Leve na lembrança a singela melodia que eu fiz pra ti, e ainda na lembrança guarde as cartas, guarde também qualquer traço do que sobrou de mim, se houver algo que sobrou; não acredito que eu tenha sido o suficiente para bastar e ainda deixar sobras, talvez eu tenha sido o vinho que deixou a taça meio cheia, ou meio vazia (a depender de como fui visto), ainda longe de transbordar e manchar eternamente a toalha da mesa, ou talvez eu tenha sido o vinho branco que insiste em não manchar nada, que elimina vestigios de sua existência apenas com um copo d'água. E por não deixar manchas ou marcas da minha passagem, quem há de lembrar de mim? O que há de lembrar de mim? Nada, nem ninguém. De maneira otimista digo que aprendi a ser assim, imperceptível. De maneira pessimista digo que não sou o que veio para ser percebido, embora tentasse. Por isso escrevo, faço cartas, entoo músicas, é o meu método de mostrar o que sinto ou quero, e por ser deveras excentrico, sou taxado de sonhador, inocente, bobo. Esse é o artifício dos vinhos que não mancham: deixar um aroma, a rolha, o rótulo, qualquer coisa que supere o fato deles não existirem para serem intensos. Acredito na arte dos vinhos, aquela que se apoia no tempo para dar vida e sabor à bebida, e com o tempo espero aperfeiçoar minha intensidade de vinho, espero ser suficiente para transbordar taças, manchar toalhas de mesa, saciar olfatos e escolher a minha própria taça, uma firme, que realce minha cor, que não tremule, pois se a taça cai, eu caio. Quero ser o vinho da safra que é exportada porque deu certo, e não a que permanece à esmo no galpão, esperando ser consumido por alguém que bebe qualquer coisa.